terça-feira, 9 de novembro de 2021

ACIDENTE OU SINISTRO?

 

TERMINOLOGIA EM EVENTOS DE TRÂNSITO

 

            Os profissionais que realizam atividades técnicas relacionadas ao trânsito necessitam desenvolver seus trabalhos dentro de uma terminologia comum. É essencial a utilização correta e precisa dos termos utilizados, sob o risco de invalidação de laudos, relatórios e trabalhos científicos. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) apresenta as definições das terminologias usadas em seu Anexo I. 

 
            Neste caminho, a Associação Brasileira de Normas Técnicas lançou, no ano de 2020, a NBR 10697, que pretende normatizar a terminologia para pesquisa de SINISTROS DE TRÂNSITO. Iniciativa louvável, mas que já nasce criando polêmica ao substituir a tradicional denominação “ACIDENTE” por “SINISTRO”. Além de alguns outros erros crassos, esta troca polêmica é um desserviço ao ramo de estudos e tão inócuo como propor a substituição das vogais “a” e “o” por “e” porque existem pessoas incomodadas com a existência de gênero (não sexo) na linguagem. Fica evidente que a norma foi elaborada sem acompanhamento dos setores que realmente trabalham e estudam a matéria. O erro e despropósito ficam claros quando é definido o escopo da Norma em português e inglês (grifo nosso):

 Escopo

 Esta Norma define os termos técnicos utilizados na preparação e execução de pesquisas relativas a sinistros de trânsito e na elaboração de relatórios estatísticos e operacionais.

 Scope

This Standard defines the thechnical terms to be used on preparation an execution of researches related to traffic crashes and elaboration of statistical and operational reports.

             A definição de trânsito está no artigo 1º do CBT e anexo I (sem considerar as inovações propostas pela ABNT):

 Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código.

         § 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.

 TRÂNSITO - movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres.

             Este autor sugere, complementar como: movimentação e imobilização de veículos,  cargas, pessoas e animais.

             Já a adoção do termo “SINISTRO”, pela ABNT, é uma flagrante parcialidade e apropriação do termo usado pelas empresas seguradoras para definir aquilo que seria melhor nominado como “PERDA” (em inglês, LOSS). O setor de seguros utiliza a seguinte definição:

 SINISTRO: Acidente que causa danos e/ou prejuízos a um bem segurado e, por isso, o termo está presente na apólice do seguro. Já o sinistro integral (perda total) é quando o carro não pode ser recuperado, seja por motivo de roubo ou colisão.

Mas afinal, qual o termo mais apropriado: SINISTRO, COLISÃO OU ACIDENTE? Lembramos que a alteração imotivada de nomenclaturas tecnicamente consolidadas em um setor causa prejuízos às publicações e trabalhos já realizados. E mais: a nomenclatura técnica segue uma uniformidade mundial, seguindo a mesma raiz nos principais idiomas (a exceção da língua alemã):

             Acidente de Trânsito: em inglês é traffic accident,; italiano, incidente stradale; espanhol, accidente de trânsito; francês, accident de la route. Em alemão é Verkehrsunfall.

        O termo “SINISTRO” não é adotado mundialmente, sendo utilizado prioritariamente como adjetivo com significado de “ameaçador”. Já “ACIDENTE” é um termo universal, definido como evento inesperado, que causa danos pessoais, materiais ou ambos. Logo, entendemos que a sua mais correta definição é:

 ACIDENTE DE TRÂNSITO: Evento inesperado, ocorrido durante movimentação e imobilização de veículo, cargas, pessoas e animais nas vias terrestres, causando danos pessoais, danos materiais ou ambos.

                 Acidente de Trânsito é, portanto o termo mais amplo e, tecnicamente, mais adequado. A literatura de língua inglesa usa também frequentemente o termo “Traffic Crash”, que significa Colisão de Tráfico. Colisão ou ainda choque são conhecidas por variações populares e regionais (entre os gaúchos, por exemplo, é comum chamar “acidente” de “batida” ou “pechada” - este termo vem do gálio e descreve o choque entre dois cavaleiros em uma justa, no “pecho”, peito).

 COLISÃO DE TRÂNSITO: Choque envolvendo pelo ao menos um veículo durante o uso de vias terrestres.

             A definição de SINISTRO DE TRÂNSITO, de acordo com a Norma polêmica, apresenta abrangência tão grande que a torna inútil ao fim que se destina. 

 SINISTRO DE TRÂNSITO: Todo evento que resulte dano ao veículo ou à sua carga e/ou em lesões a pessoas e/ou animais, e que possa trazer dano material ou prejuízos ao trânsito, à via ou ao meio ambiente, em que pelo menos uma das partes está em movimento nas vias terrestres ou em áreas abertas ao público.

             De acordo com esta definição, um sinistro de trânsito se configura até se alguém estacionar um veículo e cortar uma árvore! Ou se um condutor usar o seu automóvel para cometer um homicídio intencional. E, ainda mais: se um passageiro derramar um copo de suco e manchar o estofamento do veículo, estará cometendo um sinistro de trânsito!!! Sem esquecer que o bloqueio de rodovias em greves e manifestações também se enquadra na definição.

 Outros aspectos da norma são é tão abrangentes que pode  incluir navios, barcos, aeroplanos etc. Ainda: pessoas que sofrem pela perda de entes queridos são vítimas de sinistros de trânsito; pode existir uma vítima sem lesões e por aí vai...

                 Não vou estender muito a crítica à nova Norma da ABNT, claramente definida sem consulta aos setores especializados e, como relatado, muito mal revisada. A conclusão é óbvia: ela precisa ser revisada e corrigida, devendo refletir o estado da técnica e o conhecimento universalmente aceito e não o contrário.

 É muito mais fácil e lógico alterar um documento incorreto do que milhares de laudos, livros, publicações, teses e outros para adequar ao pensamento de um burocrata da ciência.

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