quarta-feira, 24 de julho de 2024

 

DEBATE PERICIAL

Cognoscere oppositum

    A Perícia é uma construção técnica conduzida pelo Perito escolhido pele Juízo com a participação de Peritos Assistentes definidos pelas partes. Este processo faz parte  do  direito  do  contraditório  técnico dentro do âmbito legal. A argumentação  é  debate  torna-se  importante,  preferencialmente  nas  etapas iniciais para que se chegue a um possível consenso técnico  antes  da  elaboração  e  entrega  do  Laudo Oficial.   Ocorre  que  em  disputas  judiciais  o  consenso  é  normalmente  difícil,  o  que  gera  laudos discordantes com argumentação e contra argumentação pelas partes.  

     A argumentação é basicamente uma organização discursiva com características próprias distinta de outros discursos, como a narração, a descrição e a explicação. Dentre suas características principais, a argumentação inclui a negociação de argumentos a favor e contrários a um ponto de vista, objetivando chegar a uma conclusão. Argumentar significa opor-se ao ponto de certeza, destacado o que é suscetível a debate.

   Em argumentação científica, há contraposição de ideias e de justificativas para fundamentar a diferentes pontos de vista. É a base analítica da confirmação do discurso. Toulmin (1958) propôs um modelo bastante usado no meio científico para construir e analisar argumentação. Segundo o modelo os elementos que compõem a estrutura de um argumento são o dado, a conclusão, a justificativa, os qualificadores modais, a refutação e o conhecimento. É uma operacionalização do Método Cartesiano já mencionado.

     Paul Graham desenvolveu uma teoria bastante própria no que define e coloca a argumentação em uma hierarquia de valor.

 

 

Lembrando que a Perícia, como  todo  o  processo  legal,  é  pautada  por  leis  que  garantem  o  direito individual. Entre estes, o direito ao contraditório é uma das bases constitucionais, estabelecido em seu capítulo 5º.

     Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”

    Desta forma, argumentos, contra argumentos, impugnações devem ser enfrentados dentro do rito pericial até a finalização da prova. É normal as partes, através de seus assistentes, buscarem a correção das conclusões e até a invalidação da prova, lembrando.


    Porém a Perícia é um ato de um só homem,  tido  como  especialista.  Não  é  incomum  que  o  Ego, Título, Currículo e similares substitua a argumentação científica como fundamentador  das  conclusões. O Perito acometido da Hipertrofia do Ego absorve um sentimento de onipotência  intelectual  que o faz sentir-se um oráculo da inteligência universal sendo consultado por humanos infantis em dúvidas pueris sobre assuntos banais para sua universal sapiência. Além disto, quando o ego substitui  o  argumento, os procedimentos periciais acabam sendo ignorados.   Assim,  Algumas  argumentações contra  o  texto ou contra o homem, que não são consideradas louváveis, podem se tornar necessárias.

 


quarta-feira, 10 de julho de 2024

 

ASSISTENTE TÉCNICO PARA ASSISTIR “A” OU “À” PERÍCIA?

    Em processos que envolvem questões com complexidade técnica, a prova pericial é comum. É facultado a parte indicar um assistente técnico para acompanhar o trabalho pericial. O entendimento comum é que o Perito Assistente tem o papel de “olhos e ouvidos” da parte na condução do ato pericial, fiscalizando e assistindo à atuação do Perito Oficial. Empresas normalmente designam um técnico que tenha acompanhado o problema para servir de auxiliar ao seu corpo jurídico a partir do momento que a perícia é designada. Esse auxiliar vai colaborar com o advogado para a produção dos quesitos que serão respondidos na perícia judicial e também irá acompanhar as inspeções que o perito realizar, auxiliando o jurídico em alguma eventual contestação dos resultados do laudo pericial. Os resultados são dependentes do entendimento e do trabalho do Perito Oficial.

                                     

    Em face da eficácia questionável deste procedimento, empresas e escritórios jurídicos mais atentos ao processo contencioso têm buscado empresa e assistentes profissionais para assistir a perícia. A diferença a supressão da crase se traduz no profissionalismo e atuação dinâmica no processo.

    O assistente técnico-profissional, normalmente, é chamado ao processo nas fases iniciais, seja da distribuição ou da contestação. Ele serve como um auxiliar técnico para todas as fases processuais, em destaque a perícia. Com o conhecimento amplo e geral do estado da técnica, e conhecimento dos procedimentos científicos necessários para a comprovação de teses, este profissional desenvolve a tese técnica para ser trabalhada conjuntamente com a tese jurídica dentro de parâmetros factíveis de comprovação.

    E mais do que isso, este profissional deve conhecer todos os procedimentos periciais aceitáveis para fazer uma atuação ativa junto ao perito, não somente fiscalizando, mas também auxiliando este na comprovação das teses apresentadas. Assistência a perícia, sem crase, significa que a atuação é ativa na produção de provas e não meramente uma fiscalização de procedimentos do perito oficial.

    Assistente técnico fornecido pelo cliente dentro do seu grupo de profissionais, embora possa ter um conhecimento aprofundado do assunto que envolve a discussão, normalmente está fazendo a sua primeira assistência. Desta forma, não tem o conhecimento do rito pericial e do que pode ou não pode ser feito na produção desta prova, tornando-se meramente um elemento de consulta pelo perito e pelo advogado. Isto muitas vezes prejudica o resultado da perícia em desfavor da tese defendida. Ocorre que a perícia técnica é um procedimento judicial que visa a produção de uma prova que possa ser entendida pelo leigo, no caso, o judiciário, o juiz e as partes que compõem.

    A profissionalização da perícia e assistência técnica é o caminho da moderna advocacia na defesa do cliente no campo contencioso. Empresas especializadas, com profissionais experientes e treinados dentro da perícia técnica e seus desdobramentos são ferramentas primorosas na prática do bom direito. Se o resultado de um litígio é fortemente influenciado pela qualidade do profissional de direito, certamente um profissional técnico, perícia, também influencia fortemente na comprovação das teses defendidas.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

 

 ENGENHARIA JURÍDICA

 

       No final dos anos 90, eu costumava fazer uma pergunta embaraçosa aos meus alunos de engenharia do último ano: o que é engenharia? Profissionais quase formados não tinham noção do que era sua futura profissão. Do instigante exercício saía uma definição aceitável:

“Profissão que aplica com metodologia cientifica conhecimentos exatos, naturais e humanos abrangidos pelo Estado da Arte para utilização econômica de recursos na solução de problemas e benefício do ser humano.”

     Aos advogados a pergunta geraria algo semelhante a:

“Profissão que aplica conhecimentos das leis, decisões judiciais, teorias jurídicas abrangidos pelo Direito para defesa dos interesses das pessoas.”

Mas a pergunta do momento é: “O que é Engenharia Jurídica?”

Primeiramente vamos observar o quão semelhantes são as profissões de engenheiro e advogado. Ambos são profissionais que dominam uma área abrangente de conhecimentos e a aplicam de forma prática para resolver problemas ou demanda de pessoas.

 



A Advocacia em seus primórdios operava de forma oral e escrita. Hoje, com a revolução digital, a atuação jurídica já demanda uma abordagem multimídia. As leis e suas aplicações, teses e jurisprudências crescem exponencialmente, demandando mais estudo, esforço e organização por parte do operador de direito. Da mesma forma, a complexidade técnica das demandas e, consequentemente de suas teses e defesas, está cada vez maior. Por esta porta, a engenharia adentrou e cresceu dentro da área jurídica.

 Eventos de interesse legal, como crimes, acidentes e similares, necessitam do esclarecimento técnico para correta aplicação do direito. A Engenharia Forense é área de atuação deste profissional. Utilizando o conhecimento científico, atua diretamente sobre cenários de crime, acidente e indícios, produzindo provas técnicas e preservando a cadeia de custódia para inquéritos e processos.

 Já dentro do processo, a matéria seguidamente envolve questões técnicas que extrapolam a capacidade do julgador. A perícia judicial envolve o profissional com conhecimento capaz de traduzir a complexidade técnica para a cognição do leigo. A Engenharia Legal expande a atuação meramente forense do engenheiro para uma atuação mais dinâmica dentro do processo legal. Esta atuação é formal e sempre a luz do contraditório. O profissional atua sob o manto do Juiz ou ainda com assistente das partes. Neste aspecto, existe uma sinergia entre o assistente e o profissional de direito, que passam a trabalhar conjuntamente nos interesses da parte.

 O crescimento e aprimoramento da relação entre o Profissional Jurídico e o Profissional de Engenharia criou um novo ramo. A Engenharia Jurídica engloba, além da forense e legal, a atuação direta do engenheiro dentro do universo da advocacia. A advocacia moderna demanda conhecimento técnico avançado, além do domínio das informações. O engenheiro que atua na área de direito, além dos conhecimentos forenses e legais, opera na organização das informações e conhecimentos jurídicos em forma de protocolos e algoritmos de tecnologia de informação com o objetivo de sistematizar o trabalho do profissional de direito.

 A Engenharia Jurídica não veio para substituir o Advogado, mas sim para acrescentar, a este, ferramentas de Inteligência Protocolar Humana. Ao contrário da Inteligência Artificial que chegou propondo substituir o homem, o Engenheiro Jurídico é um parceiro que veio para, através de algoritmos técnicos, potencializar a atuação do Advogado. É a era do advogado de jaleco.

 

 

 

 

segunda-feira, 6 de maio de 2024

 

LAUDO PERICIAL DE ACIDENTE DE TRÂNSITO DA PRF – Atalho Perigoso e Ilegal

    Aqueles que trabalha de maneira direta ou indireta com trânsito, seja como advogado ou perito atuando em processos evolvendo acidentes têm se deparando com um documento denominado de “Laudo Pericial de Acidente de Trânsito” emitido pela Polícia Rodoviária Federal que vêm substituindo o “Boletim de Acidente de Trânsito”. Esta “Perícia” feita no meio do local de acidente por um policial sem formação, especialização ou concurso termina em uma “Conclusão”, supostamente baseada em “vestígios, narrativas e análises” tiradas da imaginação do leigo e que comprometem pesadamente a cadeia de custódia criando uma falsa prova sempre com atribuições ilegais de culpa.   


    Há anos se alerta que o chamado “Laudo Pericial de Acidente de Trânsito”, defendido com unhas e dentes pela cúpula da PRF é um desvio perigoso e ilegal da função primordial da corporação: de fazer levantamento de campo de locais de acidente de trânsito. Fruto de uma interpretação forçada do inciso XIII acrescentado ao artigo 20º do Código de Trânsito pela lei 14.229-21, que abre a perícia administrativa para a PRF, este documento substituiu o Boletim de Atendimento de Trânsito, liberando ao policial rodoviário, leigo e sem formação, o papel onipotente de levantar, avaliar, concluir e julgar a responsabilidade dos envolvidos sem o contraditório e a ampla defesa.  

     O atendimento de acidente de trânsito ocorrido em rodovias e estradas federais é feito pela Polícia Rodoviária Federal. O Artigo 20 do Código de Trânsito Brasileiro, em seu parágrafo IV diz:

     Art. 20. Compete à Polícia Rodoviária Federal, no âmbito das rodovias e estradas federais:

       IV - Efetuar levantamento dos locais de acidentes de trânsito e dos serviços de atendimento, socorro e salvamento de vítimas;

     E a nova redação inclui

           XIII - realizar perícia administrativa nos locais de sinistros de trânsito. 

     Inicialmente, por que ilegal? 

     Um acidente de trânsito e seus desdobramentos não são caraterizados como processo administrativo. Ainda mais quando existe danos pessoais, quando passam a ser um possível crime.

     Os acidentes de trânsito devem ser atendidos por autoridade policial, principalmente pelo fato de que a maior parte deles pode caracterizar crime de trânsito.  O crime de trânsito é definido pelo artigo 291 da Lei no. 9.503/1997, que estabelece o Código de Trânsito Brasileiro, sendo tipificado principalmente pelos artigos 302 a 312, homicídio, lesão corporal, omissão de socorro, entre outros.

     Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que couber.

         Dentro da esfera crime, a autoridade policial responsável determinará a perícia de ofício ao órgão competente. Os peritos chamados são concursados, independente e, principalmente: formados na área. É importante destacar que a atividade pericial oficial é regrada pela Lei 12.030/2009 que estabelece em seu artigo 2º:

     Art. 2º No exercício da atividade de perícia oficial de natureza criminal, é assegurado autonomia técnica, científica e funcional, exigido concurso público, com formação acadêmica específica, para o provimento do cargo de perito oficial.

     O Decreto-Lei 3.689/41 já determinava a exigência ainda de diploma superior ao perito concursado, confirmado por nova redação da Lei 11.690/2008.

     Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior.

     Lembrando ainda que é facultado aos indiciados, indicar assistentes técnicos.

     Logo, a Perícia de Acidente feita pela PFR é ilegal porquê:

     Não é perícia administrativa e sim criminal;

Não é realizada por Perito Concursado;

Não é realizada por especialista formado;

Não preserva a autonomia funcional;

Não foi solicitada pela Autoridade Policial;

Não permite o contraditório.

     E por que é perigosa? 

    O ponto mais grave é que este trabalho vem substituindo o importantíssimo levantamento de local, deixando de existir a coleta de provas. As provas são importantes para a verdadeira perícia, realizada pela polícia científica. A cadeia de custódia, uma vez quebrada vai impactar no devido processo legal. O mesmo artigo 158 do CPP salienta.

     Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

     Logo, a Perícia de Acidente feita pela PFR é perigosa porquê:

 Quebra a cadeia de custódia, perdendo-se provas importantes;

Usurpa a função do perito oficial;

Atalha a formação universitária e especializada colocando leigos como peritos;

Materializa pseudo provas com erros crassos;

Atribui culpa sem processo legal.

     Os erros e injustiças estão se acumulando, tanto na responsabilização de quem não deve, como na liberação de quem deveria ser responsabilizado em função deste “jeitinho brasileiro” usado para atalhar o caminho legal.

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

CUSTO ECONÔMICO DO ACIDENTE DE TRÂNSITO

 

CUSTO ECONÔMICO DO ACIDENTE DE TRÂNSITO


    Já definimos ACIDENTE DE TRÂNSITO como evento inesperado, ocorrido durante a movimentação e imobilização de veículo e suas cargas, pessoas e animais nas vias terrestres, causando danos pessoais, danos materiais ou ambos. Ocorre que, além de ser um evento indesejável que causa mortes e prejuízos diretos, as responsabilidades cíveis e criminais são muito maiores do que se possa imaginar.

Com número superior a 700 mil eventos ao ano e mais de 30 mil mortes contabilizadas, os casos envolvendo acidentes de trânsito movimentam, no Brasil, uma parcela significativa dos processos judicializados. Das mais de 115 milhões de ações em curso, 5% delas têm alguma relação a sinistros automotivos e similares. São quase 6 milhões de casos, mobilizando mais de 350 bilhões de reais, algo próximo ao PIB do Uruguai.

 Este custo atinge, muito além do cidadão, toda a cadeia produtiva. Todo o setor de transporte tem suas ações contenciosas contabilizadas como custos inerentes de sua atividade. Envolvendo transportadoras, empresas de transporte de passageiros, locadoras, concessionárias de rodovias, poder público, todos que operam com veículos e utilizam as vias terrestres acabam envolvidos em algum acidente com perdas de vidas e valores financeiros. Os pedidos são variados, centrando-se em indenizações pesadas por perdas de vidas, danos materiais e morais. Também é significativa a parcela de ações que buscam a responsabilização criminal de eventos, podendo envolver, além dos condutores, os responsáveis pela empresa e superiores do funcionário envolvido.

 Também as seguradoras são envolvidas. Atividades que contém risco buscam garantia de funcionamento sem prejuízos inesperados advindos de acidentes. A cobertura securitária movimenta milhões em prêmios e indenizações. Por isso, há muitos casos envolvendo discussões de valores no judiciário. As fraudes e negativas de indenização são comuns e amplamente judicializadas.

 As montadoras e concessionárias de veículos compõem outro setor amplamente envolvido em demandas relativas a acidentes e fatos correlatos. O veículo é um dos pilares do evento acidente de trânsito. Nada mais natural que questionar a sua responsabilidade. Defeitos de fabricação e manutenção também são causas comuns de acidentes com prejuízos e mortes e envolvem processos de indenizações milionárias. O trabalho preventivo, através de “recalls”, é amplamente difundido, gerando milhões em custos, mas ainda assim não elide a totalmente reponsabilidade civil e criminal das empresas.

 A litigância em eventos de trânsito acarreta excessivas demandas ao judiciário. A maior parte das grandes cidades já possui, inclusive, varas especializadas no assunto. Muitos escritórios jurídicos também buscam aprimorar sua qualificação no atendimento a vítimas de processos de trânsito. Há todo um conhecimento específico e leis sobre a matéria, regrando tanto o comportamento como as punições.

 Inclusive, estes casos demandam cooperação e análise do setor de engenharia. Acidentes são, normalmente, atendidos pelo poder público, gerando boletins de ocorrência, que, muitas vezes, não explicam os acidentes com precisão e coerência. As responsabilidades ficam “ocultadas” com situações e provas que desaparecem rapidamente com o tempo. Nestes casos, a perícia técnica é de vital importância. Profissionais capacitados e treinados conseguem promover a reconstituição dos acidentes. Estes peritos, auxiliares da justiça, devem elucidar os fatos e definir, com comprovação científica, as responsabilidades de cada envolvido, sob o ponto de vista técnico, o que é fundamental para que o operador jurídico possa definir a responsabilidade legal de cada um e aplicar a Lei.

 Dentro do setor produtivo, o contencioso relativo aos sinistros de trânsito chega a gerar um custo de quase 10% do PIB do setor. A judicialização de contendas onera toda a cadeia produtiva e é, certamente, uma parcelas muito significativas. Para o seu atendimento, torna-se, inclusive, um custo fixo, tanto pela indenização como pela manutenção dos departamentos jurídicos e técnicos. Estes valores são certamente incorporados ao custo final do produto. Por este motivo, os setores industrial e de serviços estão se atentando cada vez mais à prevenção e preservação de provas em caso de acidente. Atualmente, protocolos e assessoria técnica especializada fazem parte, do processo produtivo, procurando minimizar  riscos e custos do evento acidente na cadeia produtiva.



terça-feira, 9 de novembro de 2021

ACIDENTE OU SINISTRO?

 

TERMINOLOGIA EM EVENTOS DE TRÂNSITO

 

            Os profissionais que realizam atividades técnicas relacionadas ao trânsito necessitam desenvolver seus trabalhos dentro de uma terminologia comum. É essencial a utilização correta e precisa dos termos utilizados, sob o risco de invalidação de laudos, relatórios e trabalhos científicos. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) apresenta as definições das terminologias usadas em seu Anexo I. 

 
            Neste caminho, a Associação Brasileira de Normas Técnicas lançou, no ano de 2020, a NBR 10697, que pretende normatizar a terminologia para pesquisa de SINISTROS DE TRÂNSITO. Iniciativa louvável, mas que já nasce criando polêmica ao substituir a tradicional denominação “ACIDENTE” por “SINISTRO”. Além de alguns outros erros crassos, esta troca polêmica é um desserviço ao ramo de estudos e tão inócuo como propor a substituição das vogais “a” e “o” por “e” porque existem pessoas incomodadas com a existência de gênero (não sexo) na linguagem. Fica evidente que a norma foi elaborada sem acompanhamento dos setores que realmente trabalham e estudam a matéria. O erro e despropósito ficam claros quando é definido o escopo da Norma em português e inglês (grifo nosso):

 Escopo

 Esta Norma define os termos técnicos utilizados na preparação e execução de pesquisas relativas a sinistros de trânsito e na elaboração de relatórios estatísticos e operacionais.

 Scope

This Standard defines the thechnical terms to be used on preparation an execution of researches related to traffic crashes and elaboration of statistical and operational reports.

             A definição de trânsito está no artigo 1º do CBT e anexo I (sem considerar as inovações propostas pela ABNT):

 Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código.

         § 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.

 TRÂNSITO - movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres.

             Este autor sugere, complementar como: movimentação e imobilização de veículos,  cargas, pessoas e animais.

             Já a adoção do termo “SINISTRO”, pela ABNT, é uma flagrante parcialidade e apropriação do termo usado pelas empresas seguradoras para definir aquilo que seria melhor nominado como “PERDA” (em inglês, LOSS). O setor de seguros utiliza a seguinte definição:

 SINISTRO: Acidente que causa danos e/ou prejuízos a um bem segurado e, por isso, o termo está presente na apólice do seguro. Já o sinistro integral (perda total) é quando o carro não pode ser recuperado, seja por motivo de roubo ou colisão.

Mas afinal, qual o termo mais apropriado: SINISTRO, COLISÃO OU ACIDENTE? Lembramos que a alteração imotivada de nomenclaturas tecnicamente consolidadas em um setor causa prejuízos às publicações e trabalhos já realizados. E mais: a nomenclatura técnica segue uma uniformidade mundial, seguindo a mesma raiz nos principais idiomas (a exceção da língua alemã):

             Acidente de Trânsito: em inglês é traffic accident,; italiano, incidente stradale; espanhol, accidente de trânsito; francês, accident de la route. Em alemão é Verkehrsunfall.

        O termo “SINISTRO” não é adotado mundialmente, sendo utilizado prioritariamente como adjetivo com significado de “ameaçador”. Já “ACIDENTE” é um termo universal, definido como evento inesperado, que causa danos pessoais, materiais ou ambos. Logo, entendemos que a sua mais correta definição é:

 ACIDENTE DE TRÂNSITO: Evento inesperado, ocorrido durante movimentação e imobilização de veículo, cargas, pessoas e animais nas vias terrestres, causando danos pessoais, danos materiais ou ambos.

                 Acidente de Trânsito é, portanto o termo mais amplo e, tecnicamente, mais adequado. A literatura de língua inglesa usa também frequentemente o termo “Traffic Crash”, que significa Colisão de Tráfico. Colisão ou ainda choque são conhecidas por variações populares e regionais (entre os gaúchos, por exemplo, é comum chamar “acidente” de “batida” ou “pechada” - este termo vem do gálio e descreve o choque entre dois cavaleiros em uma justa, no “pecho”, peito).

 COLISÃO DE TRÂNSITO: Choque envolvendo pelo ao menos um veículo durante o uso de vias terrestres.

             A definição de SINISTRO DE TRÂNSITO, de acordo com a Norma polêmica, apresenta abrangência tão grande que a torna inútil ao fim que se destina. 

 SINISTRO DE TRÂNSITO: Todo evento que resulte dano ao veículo ou à sua carga e/ou em lesões a pessoas e/ou animais, e que possa trazer dano material ou prejuízos ao trânsito, à via ou ao meio ambiente, em que pelo menos uma das partes está em movimento nas vias terrestres ou em áreas abertas ao público.

             De acordo com esta definição, um sinistro de trânsito se configura até se alguém estacionar um veículo e cortar uma árvore! Ou se um condutor usar o seu automóvel para cometer um homicídio intencional. E, ainda mais: se um passageiro derramar um copo de suco e manchar o estofamento do veículo, estará cometendo um sinistro de trânsito!!! Sem esquecer que o bloqueio de rodovias em greves e manifestações também se enquadra na definição.

 Outros aspectos da norma são é tão abrangentes que pode  incluir navios, barcos, aeroplanos etc. Ainda: pessoas que sofrem pela perda de entes queridos são vítimas de sinistros de trânsito; pode existir uma vítima sem lesões e por aí vai...

                 Não vou estender muito a crítica à nova Norma da ABNT, claramente definida sem consulta aos setores especializados e, como relatado, muito mal revisada. A conclusão é óbvia: ela precisa ser revisada e corrigida, devendo refletir o estado da técnica e o conhecimento universalmente aceito e não o contrário.

 É muito mais fácil e lógico alterar um documento incorreto do que milhares de laudos, livros, publicações, teses e outros para adequar ao pensamento de um burocrata da ciência.

A GUERRA DO TRÂNSITO CONTINUA



         Há 13 anos escrevi um texto intitulado “A Guerra do Trânsito”. O título fazia referência ao número diário de mortos em acidentes nas ruas e estradas, que chegava próximo a 120 no Brasil e 4.000 no mundo. Embora este número (de óbitos de trânsito diários no mundo) seja menor que o de vítimas da 2ª Guerra Mundial – que chegou a 38.000,00 - está acima do de outros conflitos, como as Guerras da Secessão e do Vietnã, com 500 vítimas diárias. Só no Brasil, os mortos superam em 3 vezes os brasileiros mortos por dia na guerra do Paraguai.

             Da data de publicação do artigo até hoje, o Brasil já perdeu mais de 570 mil vidas no trânsito, ou seja: a guerra continua. É uma tragédia considerável pelo número de mortos, e ainda mais catastrófica pelo tempo que vem se desenrolando, lembrando ainda que não tem prazo para terminar.

 


              Mas por que transitamos?

          O homem é um ser nômade por natureza. Desde os tempos pré-históricos, sua sobrevivência estava intimamente ligada a movimentos migratórios de tribos inteiras em busca de alimentos e proteção.

              Com a evolução da civilização e a criação do automóvel e outros veículos, tornou-se necessária a construção de estrutura gigantesca de vias, estradas, ruas, para facilitar o deslocamento de pessoas, animais e mercadorias para diversos lugares do planeta. Também foi imprescindível criar leis e regras para regular a circulação e tecnologia de deslocamento e segurança.  A movimentação de bens e seres, envolvendo suas características, diversidades e regramento, compreende o que genericamente denominamos de Trânsito.

         Os setores relacionados ao Trânsito compõem a maior força econômica do planeta, gerando valores financeiros consideráveis, alta carga tributária e um grande número de postos de trabalho, contabilizando-se empregos diretos e indiretos.

         Concordando-se ou não, as guerras têm objetivos envolvidos. As justificativas podem ser altruístas (por exemplo, busca por justiça, igualdade, liberdade, equilíbrio, respeito) ou misantropia, ambição, cobiça, avidez. É um jogo de objetivo e conquista, sendo a morte a sua representação maior.

            Já as mortes no trânsito são falhas indesejáveis do fenômeno de deslocamento. Os acidentes podem causar óbitos ou ferimentos graves, gerando sequelas físicas e emocionais, além de horas, dias, anos de trabalho perdidos. Por este motivo, são extremamente relevantes para a saúde pública, sendo considerados “a doença social que vitima milhões de pessoas por ano no mundo, segundo o Transportation Research Board (1990)”, ficando apenas um pouco atrás das doenças do coração e do câncer. Ao contrário das outras doenças e como agravante, concentra os óbitos na camada mais jovem da população, aumentando os prejuízos econômicos e sociais causados.

           Para compreender o “evento acidente”, é fundamental a análise do funcionamento do “fenômeno trânsito”, para que se possam definir as ações necessárias para minimizar este tipo de ocorrência.

         Três elementos interagem no contexto sócio comportamental que forma o trânsito: o homem, a via e o veículo. O acidente é consequência da falha de um ou mais componentes deste trinômio.  O diagrama abaixo mostra a participação de cada elemento no evento acidente, destacando o fator humano.

O acidente de trânsito é muito mais complexo do que a imagem simplista apresentada pela mídia, que normalmente destaca o comportamento individual dos motoristas, sem levar em conta a participação da iniciativa privada, da sociedade e, principalmente, do poder público.

        Assim, como o próprio Código de Trânsito Brasileiro define em seus Anexos, TRÂNSITO é movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres. Envolve leis, normas, regras, tecnologias e relações humanas, muitas vezes de forma conflituosa e caótica. É um processo interativo entre o ser humano, o veículo e a via. Seu funcionamento depende da harmonia dinâmica desta inter-relação, com responsabilidade direta, em vários níveis, dos usuários, poder público e da iniciativa privada.

            O ACIDENTE, embora usual, é um evento indesejável, que causa mortes e prejuízos. Em muitas situações, pode ser evitado, dependendo, para isto, de ações concretas, rigorosas e comprometidas por parte de todos os participantes do fenômeno trânsito.

             Aprofundaremos a questão, discorrendo sobre detalhes de cada elemento envolvido no processo em discussão, com a finalidade de trazer entendimento e conhecimento relevantes à adequada formulação de procedimentos e políticas que possam contribuir com a redução significativa de danos pessoais e materiais decorrentes de sinistros.