segunda-feira, 6 de maio de 2024

 

LAUDO PERICIAL DE ACIDENTE DE TRÂNSITO DA PRF – Atalho Perigoso e Ilegal

    Aqueles que trabalha de maneira direta ou indireta com trânsito, seja como advogado ou perito atuando em processos evolvendo acidentes têm se deparando com um documento denominado de “Laudo Pericial de Acidente de Trânsito” emitido pela Polícia Rodoviária Federal que vêm substituindo o “Boletim de Acidente de Trânsito”. Esta “Perícia” feita no meio do local de acidente por um policial sem formação, especialização ou concurso termina em uma “Conclusão”, supostamente baseada em “vestígios, narrativas e análises” tiradas da imaginação do leigo e que comprometem pesadamente a cadeia de custódia criando uma falsa prova sempre com atribuições ilegais de culpa.   


    Há anos se alerta que o chamado “Laudo Pericial de Acidente de Trânsito”, defendido com unhas e dentes pela cúpula da PRF é um desvio perigoso e ilegal da função primordial da corporação: de fazer levantamento de campo de locais de acidente de trânsito. Fruto de uma interpretação forçada do inciso XIII acrescentado ao artigo 20º do Código de Trânsito pela lei 14.229-21, que abre a perícia administrativa para a PRF, este documento substituiu o Boletim de Atendimento de Trânsito, liberando ao policial rodoviário, leigo e sem formação, o papel onipotente de levantar, avaliar, concluir e julgar a responsabilidade dos envolvidos sem o contraditório e a ampla defesa.  

     O atendimento de acidente de trânsito ocorrido em rodovias e estradas federais é feito pela Polícia Rodoviária Federal. O Artigo 20 do Código de Trânsito Brasileiro, em seu parágrafo IV diz:

     Art. 20. Compete à Polícia Rodoviária Federal, no âmbito das rodovias e estradas federais:

       IV - Efetuar levantamento dos locais de acidentes de trânsito e dos serviços de atendimento, socorro e salvamento de vítimas;

     E a nova redação inclui

           XIII - realizar perícia administrativa nos locais de sinistros de trânsito. 

     Inicialmente, por que ilegal? 

     Um acidente de trânsito e seus desdobramentos não são caraterizados como processo administrativo. Ainda mais quando existe danos pessoais, quando passam a ser um possível crime.

     Os acidentes de trânsito devem ser atendidos por autoridade policial, principalmente pelo fato de que a maior parte deles pode caracterizar crime de trânsito.  O crime de trânsito é definido pelo artigo 291 da Lei no. 9.503/1997, que estabelece o Código de Trânsito Brasileiro, sendo tipificado principalmente pelos artigos 302 a 312, homicídio, lesão corporal, omissão de socorro, entre outros.

     Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que couber.

         Dentro da esfera crime, a autoridade policial responsável determinará a perícia de ofício ao órgão competente. Os peritos chamados são concursados, independente e, principalmente: formados na área. É importante destacar que a atividade pericial oficial é regrada pela Lei 12.030/2009 que estabelece em seu artigo 2º:

     Art. 2º No exercício da atividade de perícia oficial de natureza criminal, é assegurado autonomia técnica, científica e funcional, exigido concurso público, com formação acadêmica específica, para o provimento do cargo de perito oficial.

     O Decreto-Lei 3.689/41 já determinava a exigência ainda de diploma superior ao perito concursado, confirmado por nova redação da Lei 11.690/2008.

     Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior.

     Lembrando ainda que é facultado aos indiciados, indicar assistentes técnicos.

     Logo, a Perícia de Acidente feita pela PFR é ilegal porquê:

     Não é perícia administrativa e sim criminal;

Não é realizada por Perito Concursado;

Não é realizada por especialista formado;

Não preserva a autonomia funcional;

Não foi solicitada pela Autoridade Policial;

Não permite o contraditório.

     E por que é perigosa? 

    O ponto mais grave é que este trabalho vem substituindo o importantíssimo levantamento de local, deixando de existir a coleta de provas. As provas são importantes para a verdadeira perícia, realizada pela polícia científica. A cadeia de custódia, uma vez quebrada vai impactar no devido processo legal. O mesmo artigo 158 do CPP salienta.

     Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

     Logo, a Perícia de Acidente feita pela PFR é perigosa porquê:

 Quebra a cadeia de custódia, perdendo-se provas importantes;

Usurpa a função do perito oficial;

Atalha a formação universitária e especializada colocando leigos como peritos;

Materializa pseudo provas com erros crassos;

Atribui culpa sem processo legal.

     Os erros e injustiças estão se acumulando, tanto na responsabilização de quem não deve, como na liberação de quem deveria ser responsabilizado em função deste “jeitinho brasileiro” usado para atalhar o caminho legal.

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

CUSTO ECONÔMICO DO ACIDENTE DE TRÂNSITO

 

CUSTO ECONÔMICO DO ACIDENTE DE TRÂNSITO


    Já definimos ACIDENTE DE TRÂNSITO como evento inesperado, ocorrido durante a movimentação e imobilização de veículo e suas cargas, pessoas e animais nas vias terrestres, causando danos pessoais, danos materiais ou ambos. Ocorre que, além de ser um evento indesejável que causa mortes e prejuízos diretos, as responsabilidades cíveis e criminais são muito maiores do que se possa imaginar.

Com número superior a 700 mil eventos ao ano e mais de 30 mil mortes contabilizadas, os casos envolvendo acidentes de trânsito movimentam, no Brasil, uma parcela significativa dos processos judicializados. Das mais de 115 milhões de ações em curso, 5% delas têm alguma relação a sinistros automotivos e similares. São quase 6 milhões de casos, mobilizando mais de 350 bilhões de reais, algo próximo ao PIB do Uruguai.

 Este custo atinge, muito além do cidadão, toda a cadeia produtiva. Todo o setor de transporte tem suas ações contenciosas contabilizadas como custos inerentes de sua atividade. Envolvendo transportadoras, empresas de transporte de passageiros, locadoras, concessionárias de rodovias, poder público, todos que operam com veículos e utilizam as vias terrestres acabam envolvidos em algum acidente com perdas de vidas e valores financeiros. Os pedidos são variados, centrando-se em indenizações pesadas por perdas de vidas, danos materiais e morais. Também é significativa a parcela de ações que buscam a responsabilização criminal de eventos, podendo envolver, além dos condutores, os responsáveis pela empresa e superiores do funcionário envolvido.

 Também as seguradoras são envolvidas. Atividades que contém risco buscam garantia de funcionamento sem prejuízos inesperados advindos de acidentes. A cobertura securitária movimenta milhões em prêmios e indenizações. Por isso, há muitos casos envolvendo discussões de valores no judiciário. As fraudes e negativas de indenização são comuns e amplamente judicializadas.

 As montadoras e concessionárias de veículos compõem outro setor amplamente envolvido em demandas relativas a acidentes e fatos correlatos. O veículo é um dos pilares do evento acidente de trânsito. Nada mais natural que questionar a sua responsabilidade. Defeitos de fabricação e manutenção também são causas comuns de acidentes com prejuízos e mortes e envolvem processos de indenizações milionárias. O trabalho preventivo, através de “recalls”, é amplamente difundido, gerando milhões em custos, mas ainda assim não elide a totalmente reponsabilidade civil e criminal das empresas.

 A litigância em eventos de trânsito acarreta excessivas demandas ao judiciário. A maior parte das grandes cidades já possui, inclusive, varas especializadas no assunto. Muitos escritórios jurídicos também buscam aprimorar sua qualificação no atendimento a vítimas de processos de trânsito. Há todo um conhecimento específico e leis sobre a matéria, regrando tanto o comportamento como as punições.

 Inclusive, estes casos demandam cooperação e análise do setor de engenharia. Acidentes são, normalmente, atendidos pelo poder público, gerando boletins de ocorrência, que, muitas vezes, não explicam os acidentes com precisão e coerência. As responsabilidades ficam “ocultadas” com situações e provas que desaparecem rapidamente com o tempo. Nestes casos, a perícia técnica é de vital importância. Profissionais capacitados e treinados conseguem promover a reconstituição dos acidentes. Estes peritos, auxiliares da justiça, devem elucidar os fatos e definir, com comprovação científica, as responsabilidades de cada envolvido, sob o ponto de vista técnico, o que é fundamental para que o operador jurídico possa definir a responsabilidade legal de cada um e aplicar a Lei.

 Dentro do setor produtivo, o contencioso relativo aos sinistros de trânsito chega a gerar um custo de quase 10% do PIB do setor. A judicialização de contendas onera toda a cadeia produtiva e é, certamente, uma parcelas muito significativas. Para o seu atendimento, torna-se, inclusive, um custo fixo, tanto pela indenização como pela manutenção dos departamentos jurídicos e técnicos. Estes valores são certamente incorporados ao custo final do produto. Por este motivo, os setores industrial e de serviços estão se atentando cada vez mais à prevenção e preservação de provas em caso de acidente. Atualmente, protocolos e assessoria técnica especializada fazem parte, do processo produtivo, procurando minimizar  riscos e custos do evento acidente na cadeia produtiva.



terça-feira, 9 de novembro de 2021

ACIDENTE OU SINISTRO?

 

TERMINOLOGIA EM EVENTOS DE TRÂNSITO

 

            Os profissionais que realizam atividades técnicas relacionadas ao trânsito necessitam desenvolver seus trabalhos dentro de uma terminologia comum. É essencial a utilização correta e precisa dos termos utilizados, sob o risco de invalidação de laudos, relatórios e trabalhos científicos. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) apresenta as definições das terminologias usadas em seu Anexo I. 

 
            Neste caminho, a Associação Brasileira de Normas Técnicas lançou, no ano de 2020, a NBR 10697, que pretende normatizar a terminologia para pesquisa de SINISTROS DE TRÂNSITO. Iniciativa louvável, mas que já nasce criando polêmica ao substituir a tradicional denominação “ACIDENTE” por “SINISTRO”. Além de alguns outros erros crassos, esta troca polêmica é um desserviço ao ramo de estudos e tão inócuo como propor a substituição das vogais “a” e “o” por “e” porque existem pessoas incomodadas com a existência de gênero (não sexo) na linguagem. Fica evidente que a norma foi elaborada sem acompanhamento dos setores que realmente trabalham e estudam a matéria. O erro e despropósito ficam claros quando é definido o escopo da Norma em português e inglês (grifo nosso):

 Escopo

 Esta Norma define os termos técnicos utilizados na preparação e execução de pesquisas relativas a sinistros de trânsito e na elaboração de relatórios estatísticos e operacionais.

 Scope

This Standard defines the thechnical terms to be used on preparation an execution of researches related to traffic crashes and elaboration of statistical and operational reports.

             A definição de trânsito está no artigo 1º do CBT e anexo I (sem considerar as inovações propostas pela ABNT):

 Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código.

         § 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.

 TRÂNSITO - movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres.

             Este autor sugere, complementar como: movimentação e imobilização de veículos,  cargas, pessoas e animais.

             Já a adoção do termo “SINISTRO”, pela ABNT, é uma flagrante parcialidade e apropriação do termo usado pelas empresas seguradoras para definir aquilo que seria melhor nominado como “PERDA” (em inglês, LOSS). O setor de seguros utiliza a seguinte definição:

 SINISTRO: Acidente que causa danos e/ou prejuízos a um bem segurado e, por isso, o termo está presente na apólice do seguro. Já o sinistro integral (perda total) é quando o carro não pode ser recuperado, seja por motivo de roubo ou colisão.

Mas afinal, qual o termo mais apropriado: SINISTRO, COLISÃO OU ACIDENTE? Lembramos que a alteração imotivada de nomenclaturas tecnicamente consolidadas em um setor causa prejuízos às publicações e trabalhos já realizados. E mais: a nomenclatura técnica segue uma uniformidade mundial, seguindo a mesma raiz nos principais idiomas (a exceção da língua alemã):

             Acidente de Trânsito: em inglês é traffic accident,; italiano, incidente stradale; espanhol, accidente de trânsito; francês, accident de la route. Em alemão é Verkehrsunfall.

        O termo “SINISTRO” não é adotado mundialmente, sendo utilizado prioritariamente como adjetivo com significado de “ameaçador”. Já “ACIDENTE” é um termo universal, definido como evento inesperado, que causa danos pessoais, materiais ou ambos. Logo, entendemos que a sua mais correta definição é:

 ACIDENTE DE TRÂNSITO: Evento inesperado, ocorrido durante movimentação e imobilização de veículo, cargas, pessoas e animais nas vias terrestres, causando danos pessoais, danos materiais ou ambos.

                 Acidente de Trânsito é, portanto o termo mais amplo e, tecnicamente, mais adequado. A literatura de língua inglesa usa também frequentemente o termo “Traffic Crash”, que significa Colisão de Tráfico. Colisão ou ainda choque são conhecidas por variações populares e regionais (entre os gaúchos, por exemplo, é comum chamar “acidente” de “batida” ou “pechada” - este termo vem do gálio e descreve o choque entre dois cavaleiros em uma justa, no “pecho”, peito).

 COLISÃO DE TRÂNSITO: Choque envolvendo pelo ao menos um veículo durante o uso de vias terrestres.

             A definição de SINISTRO DE TRÂNSITO, de acordo com a Norma polêmica, apresenta abrangência tão grande que a torna inútil ao fim que se destina. 

 SINISTRO DE TRÂNSITO: Todo evento que resulte dano ao veículo ou à sua carga e/ou em lesões a pessoas e/ou animais, e que possa trazer dano material ou prejuízos ao trânsito, à via ou ao meio ambiente, em que pelo menos uma das partes está em movimento nas vias terrestres ou em áreas abertas ao público.

             De acordo com esta definição, um sinistro de trânsito se configura até se alguém estacionar um veículo e cortar uma árvore! Ou se um condutor usar o seu automóvel para cometer um homicídio intencional. E, ainda mais: se um passageiro derramar um copo de suco e manchar o estofamento do veículo, estará cometendo um sinistro de trânsito!!! Sem esquecer que o bloqueio de rodovias em greves e manifestações também se enquadra na definição.

 Outros aspectos da norma são é tão abrangentes que pode  incluir navios, barcos, aeroplanos etc. Ainda: pessoas que sofrem pela perda de entes queridos são vítimas de sinistros de trânsito; pode existir uma vítima sem lesões e por aí vai...

                 Não vou estender muito a crítica à nova Norma da ABNT, claramente definida sem consulta aos setores especializados e, como relatado, muito mal revisada. A conclusão é óbvia: ela precisa ser revisada e corrigida, devendo refletir o estado da técnica e o conhecimento universalmente aceito e não o contrário.

 É muito mais fácil e lógico alterar um documento incorreto do que milhares de laudos, livros, publicações, teses e outros para adequar ao pensamento de um burocrata da ciência.

A GUERRA DO TRÂNSITO CONTINUA



         Há 13 anos escrevi um texto intitulado “A Guerra do Trânsito”. O título fazia referência ao número diário de mortos em acidentes nas ruas e estradas, que chegava próximo a 120 no Brasil e 4.000 no mundo. Embora este número (de óbitos de trânsito diários no mundo) seja menor que o de vítimas da 2ª Guerra Mundial – que chegou a 38.000,00 - está acima do de outros conflitos, como as Guerras da Secessão e do Vietnã, com 500 vítimas diárias. Só no Brasil, os mortos superam em 3 vezes os brasileiros mortos por dia na guerra do Paraguai.

             Da data de publicação do artigo até hoje, o Brasil já perdeu mais de 570 mil vidas no trânsito, ou seja: a guerra continua. É uma tragédia considerável pelo número de mortos, e ainda mais catastrófica pelo tempo que vem se desenrolando, lembrando ainda que não tem prazo para terminar.

 


              Mas por que transitamos?

          O homem é um ser nômade por natureza. Desde os tempos pré-históricos, sua sobrevivência estava intimamente ligada a movimentos migratórios de tribos inteiras em busca de alimentos e proteção.

              Com a evolução da civilização e a criação do automóvel e outros veículos, tornou-se necessária a construção de estrutura gigantesca de vias, estradas, ruas, para facilitar o deslocamento de pessoas, animais e mercadorias para diversos lugares do planeta. Também foi imprescindível criar leis e regras para regular a circulação e tecnologia de deslocamento e segurança.  A movimentação de bens e seres, envolvendo suas características, diversidades e regramento, compreende o que genericamente denominamos de Trânsito.

         Os setores relacionados ao Trânsito compõem a maior força econômica do planeta, gerando valores financeiros consideráveis, alta carga tributária e um grande número de postos de trabalho, contabilizando-se empregos diretos e indiretos.

         Concordando-se ou não, as guerras têm objetivos envolvidos. As justificativas podem ser altruístas (por exemplo, busca por justiça, igualdade, liberdade, equilíbrio, respeito) ou misantropia, ambição, cobiça, avidez. É um jogo de objetivo e conquista, sendo a morte a sua representação maior.

            Já as mortes no trânsito são falhas indesejáveis do fenômeno de deslocamento. Os acidentes podem causar óbitos ou ferimentos graves, gerando sequelas físicas e emocionais, além de horas, dias, anos de trabalho perdidos. Por este motivo, são extremamente relevantes para a saúde pública, sendo considerados “a doença social que vitima milhões de pessoas por ano no mundo, segundo o Transportation Research Board (1990)”, ficando apenas um pouco atrás das doenças do coração e do câncer. Ao contrário das outras doenças e como agravante, concentra os óbitos na camada mais jovem da população, aumentando os prejuízos econômicos e sociais causados.

           Para compreender o “evento acidente”, é fundamental a análise do funcionamento do “fenômeno trânsito”, para que se possam definir as ações necessárias para minimizar este tipo de ocorrência.

         Três elementos interagem no contexto sócio comportamental que forma o trânsito: o homem, a via e o veículo. O acidente é consequência da falha de um ou mais componentes deste trinômio.  O diagrama abaixo mostra a participação de cada elemento no evento acidente, destacando o fator humano.

O acidente de trânsito é muito mais complexo do que a imagem simplista apresentada pela mídia, que normalmente destaca o comportamento individual dos motoristas, sem levar em conta a participação da iniciativa privada, da sociedade e, principalmente, do poder público.

        Assim, como o próprio Código de Trânsito Brasileiro define em seus Anexos, TRÂNSITO é movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres. Envolve leis, normas, regras, tecnologias e relações humanas, muitas vezes de forma conflituosa e caótica. É um processo interativo entre o ser humano, o veículo e a via. Seu funcionamento depende da harmonia dinâmica desta inter-relação, com responsabilidade direta, em vários níveis, dos usuários, poder público e da iniciativa privada.

            O ACIDENTE, embora usual, é um evento indesejável, que causa mortes e prejuízos. Em muitas situações, pode ser evitado, dependendo, para isto, de ações concretas, rigorosas e comprometidas por parte de todos os participantes do fenômeno trânsito.

             Aprofundaremos a questão, discorrendo sobre detalhes de cada elemento envolvido no processo em discussão, com a finalidade de trazer entendimento e conhecimento relevantes à adequada formulação de procedimentos e políticas que possam contribuir com a redução significativa de danos pessoais e materiais decorrentes de sinistros.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

EU VIVI OS GOVERNOS MILITARES

            Não estou aqui para defender ou condenar o período em que o Brasil foi governado por militares. Apenas para expor o que testemunhei e o que entendi. Vou deixar o julgamento de bom ou ruim para cada um. Mesmo porque não acredito na divisão maniqueísta do mundo entre bom e mau.

 

            Foi uma época que se tinha um grau de liberdade bastante amplo. Tínhamos liberdade de fazer coisas que hoje são proibidas e patrulhadas. Nossa liberdade de agir era limitada apenas pelas leis. Algumas mais rígidas, outras mais flexíveis, mas razoavelmente cumpridas.

 

            Porém havia uma coisa que não se podia fazer, criticar o governo e a ordem vigente. A “subversão” era severamente combatida. Leis foram criadas para combater os chamados “crimes de opinião”. Excessos e crimes eram cometidos para coibir os “ataques subversivos”. Os governantes foram ativos ou coniventes com arbitrariedades (sf. Ação em que há uso abusivo de autoridade; violência ou despotismo) em nome da lei e ordem. Esta faceta da época militar teve e continua tendo a minha desaprovação pessoal e nenhum discurso que a justifique vai mudar a minha opinião.

 

            O que me assusta no atual caso da prisão do deputado é a desconfortável sensação de Déjà Vu. Testemunhamos uma pessoa que teve a sua liberdade sumariamente suprimida por ter expressado uma opinião contrária a um poder constituído do país. Como não assisti o vídeo, não posso me posicionar contra ou a favor da opinião desta pessoa; sequer posso opinar se ouve ou não crime naquilo que foi postado. Porém entendo que existe um rito legal onde este suposto delito deve ser apurado, processado, julgado e punido se assim for decidido, tudo sobre a égide da ampla defesa. Repito a assino abaixo do dito atribuído a Voltaire: “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.

 

            O que me agrada na situação é ver um político sendo responsabilizado por aquilo que diz e prega. Porém o que me desagrada profundamente é ver a casa que confio para a nossa defesa ampla contra erros e arbitrariedades passiveis de ocorrerem no judiciário, aplicando de maneira questionável as leis que juraram defender para suprimir o direito individual da mesma forma que já vi acontecer no período militar. E mais, este alongamento interpretativo legal é o mesmo usado para aliviar o peso das leis sobre os seus pares.

 

            Precisamos de um Legislativo que legisle, um Judiciário que apure e puna, um Supremo que fiscalize e um Executivo que administre sem que fiquem disputando poder e beleza. Tenho fé e esperança que estas distorções sejam corrigidas e o país possa tem uma maior estabilidade, tornando-se um lugar onde as leis sejam iguais para todos e que nenhum cidadão seja mais igual do que o outro. 


Walter Kauffmann Neto

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A GRAVAÇÃO DA PROVA PERICIAL

 

   Para aqueles que participam de atos periciais na qualidade de partes ou assistentes fica muitas vezes a dúvida sobre a permissibilidade ou não do registro gravado do ato pericial. Muitos peritos oficiais colocam empecilhos ou oposição ao registro por parte dos assistentes, causando muitas vezes constrangimento e mal estar. Independente da vontade do expert, o ato pericial é regido pelo atual Código de Processo Cível, NCPC. A parte e seu assistente não podem em hipótese alguma ter cerceados seus direitos.

    Sobre o ato pericial, embora este não seja diretamente mencionado, este é um ato análogo a uma audiência de instrução.  Ou seja, tanto a audiência de instrução como a perícia judicial são meios de colheita de prova. A diferença é que na primeira o juiz atua diretamente, enquanto na segunda o perito figura como uma espécie de longa manus ou auxiliar do magistrado. Desta forma, o que vale para uma audiência, vale para uma perícia.

    O Art. 367, do CPC estipula o procedimento da audiência de instrução e julgamento, e pode ser aplicado por analogia à perícia técnica:

 
Art. 367. O servidor lavrará, sob ditado do juiz, termo que conterá, em resumo, o ocorrido na audiência, bem como, por extenso, os despachos, as decisões e a sentença, se proferida no ato.
§ 1o Quando o termo não for registrado em meio eletrônico, o juiz rubricar-lhe-á as folhas,
que serão encadernadas em volume próprio.
§ 2o Subscreverão o termo o juiz, os advogados, o membro do Ministério Público e o
escrivão ou chefe de secretaria, dispensadas as partes, exceto quando houver ato de disposição
para cuja prática os advogados não tenham poderes.
§ 3o O escrivão ou chefe de secretaria trasladará para os autos cópia autêntica do termo
de audiência.
§ 4o Tratando-se de autos eletrônicos, observar-se-á o disposto neste Código, em
legislação específica e nas normas internas dos tribunais.
§ 5o A audiência poderá ser integralmente gravada em imagem e em áudio, em meio
digital ou analógico, desde que assegure o rápido acesso das partes e dos órgãos julgadores, observada a legislação específica.
§ 6o A gravação a que se refere o § 5º também pode ser realizada diretamente por
qualquer das partes, independentemente de autorização judicial.

    O entendimento apresentado é confirmado por decisão, em que, mesmo tendo sido proferida antes mesmo da vigência do NCPC, o TRT5 já confirma a permissão da gravação audiovisual de perícia pela parte, cumprindo-nos destacar o trecho abaixo excerto:

 “É preciso, ainda, relembrar que a produção da prova pericial se faz em verdadeiro ato judicial que se assemelha à audiência judicial. Pode-se, inclusive, falar-se em verdadeira audiência judicial. Pode-se, inclusive, falar-se em verdadeira audiência para colheita de prova, ainda que se faça sob a direção do perito, por delegação de poderes e por ordem do juiz. E tanto isso é verdade, que ao perito é assegurado, “para o desempenho de sua função”,..., “utilizar-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder de parte ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com plantas, desenhos, fotografias e outras quaisquer peças” (art. 429 do CPC)”.  

(https://trt-5.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/17958765/mandado-de-seguranca-ms-4762920105050000-ba-0000476-2920105050000/inteiro-teor-17958766)

    Salienta-se que, como a legislação estabelece que a gravação pode ser realizada “independentemente de autorização judicial”, pretendemos gravar a perícia sem submeter tal questão previamente ao perito, e, apenas utilizá-la em caso de necessidade. Desta forma, a gravação é um direito que não pode ser suprimido, atendendo os devidos cuidados:

a)    § 5o A audiência poderá ser integralmente gravada...;

    Assim, não é legal a gravação e disponibilização parcial do arquivo, mas somente na sua integralidade. 

b)   ...desde que assegure o rápido acesso das partes....

    As partes têm o direito de acessar a gravação em sua totalidade, independente de quem tenha realizado a gravação.

Lembra-se também que a gravação e disponibilização do ato está subordinada a lei como um todo. Desta forma, há que se relativizar este direito em acordo com a legislação vigente. Questões como sigilo de justiça, propriedades intelectuais, privacidade deverão ser consideras. Cuidados na divulgação e montagens também podem configurar crimes.

             Desta forma, fica claro que a gravação eletrônica por qualquer meio de um ato pericial é um direito garantido por lei as partes, independente da vontade do condutor do ato pericial. Está claro que este procedimento tem a única e exclusiva finalidade de registro do ato, sendo direito de todos o seu acesso.

Eng. Walter Kauffmann Neto

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A GARÇA E O MUNDO GLOBALIZADO (2002)

    Em uma época não muito distante, uma garça, outrora bela e radiante e eficiente pescadora, começava a sentir o peso da idade, talvez mais que simplesmente pelo efeito do tempo mas também pelo aumento da sabedoria que, infelizmente, chega apenas com as primeiras rugas. Assuntava como deveria fazer para manter seu padrão alimentar sem continuar a empreender os esforços que até então eram tão necessários. Além disto, os peixes, outrora tão estúpidos, ficavam mais espertos e ariscos, assim como as águas ficavam mais turvas e profundas. Surgiu-lhe então brilhante ideia. Primeiro aproximou-se dos líderes dos cardumes e, como entre suas qualidades estavam o dom da oratória e o domínio da informação, passou a pregar entre eles a existência do Ribeirão Encantado. Tal lugar era maravilhoso e fantástico. Todos estariam mais próximos. As águas eram rasas e cristalinas. Todos viveriam em harmonia. As águas seriam uma só, um verdadeiro ecossistema globalizado. Logo todos os peixes comentavam a mesma história, cobiçando avidamente em lá viverem.

     Metodicamente a garça preparou todos os cardumes para chegarem até o Ribeirão Prometido. Ensinou-os a se comunicar rapidamente. Organizou os cardumes caóticos. Emagreceu os peixes muito gordos, engordou os muito magros. Quando achou que todos estavam prontos, reuniu  os cardumes e avisou: “Preparem-se, levá-los-ei ao Ribeirão Encantado. Todos irão em grupos no meu bico.” Assim iniciou-se a grande passagem para as águas prometidas. Aos bandos, os peixe entregavam-se à condução da garça até o manasses.

    Quando o último peixe entrou no bico da garça, passou-lhe uma aflição pela mente: “Estou no bico daquela que sempre devorou avidamente minha raça.....Estarei louco ?” Sua preocupação durou pouco. Gentilmente a garça o libertou em um lago raso de águas cristalinas. Todos os peixes estavam lá. Com pouca profundidade e águas límpidas podia-se enxergar o céu naquele éden dos ribeirões. Além disto, estavam bastante próximos e em muita harmonia. O lugar era  belo, exatamente como a garça havia prometido. E assim  naquele paraíso aquático, a garça pode viver o resto de seus dias, pescando, sem nenhum esforço, os abundantes cardumes do Ribeirão Encantado.

    A história contada cai como uma luva para explicar o momento em que vivemos. Estamos vivenciando a transição do capitalismo selvagem para o capitalismo domesticado. Os dominantes, tal qual a garça, preparam-nos, os peixes, para a terra prometida, a qual foi chamada de mundo globalizado. Algumas condições foram necessárias para que a globalização ocorresse: estabilidade econômica da base monetária, estabilidade política, comunicação e informatização instantânea, leis que promovessem o respeito à propriedade intelectual, entre outras. Um a um, os cardumes foram sendo organizados de acordo com sua importância como reserva de proteína financeira. Muita atenção para México, Brasil, densamente povoados; menos atenção para Argentina, Uruguai.

    Uma a uma, nas últimas décadas, nossa Republiquetas Banana-Cucarachas foram guiadas para um padrão mundial. Como primeiro ponto, foram re-estabelecidas as “liberdades democráticas”. Como a democracia é o espelho do povo e a liberdade veio antes da educação, vivemos, na verdade, uma analfabetocracia, onde o governo é eleito pelo poder econômico interno ou externo. O comando, que deveria ser de todos, é exercido por uma oligocracia detentora do capital e da informação. Estes poucos são também facilmente controláveis através de mais capital e informação.

     Depois disto, a economia teve de ser estabilizada. A expansão da base monetária teve de ser travada, assim como a atividade econômica, a qualquer custo. A produção foi controlada e a geração de riquezas limitada àquela compatível com um crescimento pequeno do PIB. Tem-se, então, uma economia não inflacionária e levemente recessiva. As taxas de juros para investimento são altas e os prazos curtos. O capital de risco desaparece e a concentração dos recursos financeiros vai para o consumo pulverizado e para o autofinanciamento da dívida pública.

    Por fim, a informação e a comunicação tornam-se perfeitas e instantâneas. A organização e a estabilidade passaram a ser pregadas e difundidas entre todos como únicas virtudes de um povo a ser defendias a qualquer custo. Pouca diferença passa a existir entre México, Nova York, Tókio e São Paulo em relação ao dia-a-dia econômico. As redes bancárias passaram a ser mundiais.

      Então o Ribeirão ficou liberado para a pesca. Os governos administram com fúria arrecadadora. Os chamados países emergentes, como o Brasil, castigam impiedosamente os setores produtivos e a população com os mais variados impostos. Tudo vale para obter recursos para manter a máquina administrativa, rolar a dívida pública e realizar alguma obra. Para isto vale também privatizar toda e qualquer empresa pública. As instituições bancárias estrangeiras são as primeiras a chegar. Compram, reestruturam, demitem e agilizam qualquer banco que esteja vulnerável. Seguem grandes conglomerados de indústrias e serviços.

    A palavra de ordem no meio empresarial passa a ser a fusão ou incorporação. Desaparecem as pequenas empresas, sobrevivem apenas aquelas que tem alguma utilidade na cadeira alimentar, desculpem, cadeia produtiva, e mesmo assim, os preços globalizados permitem sua sobrevivência mas não o crescimento. As empresas saudáveis logo trocam de donos. O empresário entra em extinção e sai de cena;  prolifera o executivo, representante da mega corporação. O cidadão passa a ser refém de mega oligopólios podendo optar por sua companhia telefônica, banco e só. Os peixinhos são esfolados aos pouquinhos, com taxas, tarifas, preços monopolistas.

    E para manter e divulgar tudo isto uma fantástica máquina de propaganda de fazer inveja ao partido nazista. Consumir e se endividar são palavras de ordem. Técnicas de som e imagem fazem o cidadão acreditar que o sucesso é aquele tal remédio para hemorróidas ou aquele carro vendido com “juro zero”. Quando poderíamos imaginar assistir comercial de um bando de endividados, cantando em coro e com felicidade de da inveja o nome da “financeira” que lhe empresta dinheiro fácil a “juros baixíssimos” ?

     Vamos começar a pensar um pouco. Temos sido extremamente ingênuos nos últimos anos, cultuando uma imagem preguiçosa e indolente de nós mesmos. Por exemplo, o personagem Zé Carioca, criado pelo americano Walt Disney, não é nem um pouco parecido com o verdadeiro carioca médio, que trabalha de sol a sol pelo seu sustento, e, como disse o Chico Buarque,”....mora lá longe e chacoalha num trem da central...”. Achamos que os estrangeiros desconhecem o Brasil e pensam que nossa capital é Buenos Aires. Porém a realidade é que os executivos que aqui aportam são extremamente bem preparados e conhecem nosso país melhor do que nós mesmos.

     Além disto, a mídia somente dá destaque aos aspectos negativos do nosso dia-a-dia. Soma-se o fato de que mentiras históricas são repetidas diariamente nos nossos ouvidos. Vejam o orgulho com que outros países tratam seus personagens históricos e a chacota com que tratamos os nossos, chegando a denominar uma mini-série sobre o Brasil exibida em vários países como “O Quinto dos Infernos”. É’ o exemplo máximo da nossa propensão a bobos da corte mundial. As mentiras e infâmias repetidas seguidamente passam a ser verdades defendidas pelo povo.

  Não vamos ressuscitar a xenofobia rançosa da esquerda claudicante, mas valorizar nossas potencialidades. Buscar soluções econômicas e sociais mais contextualizadas com nossa realidade tupiniquim.  O Brasil tem muito que produzir e gerar riquezas internas. Temos de plantar 100% das nossas terras agricultáveis e não 10% como fazemos hoje. As indústrias tem de trabalhar dois turnos e ampliar e não trabalhar meio turno e fechar, como tem ocorrido. O capital, a terra, a tecnologia devem ser instrumentos de desenvolvimento e não de dominação. Se garantirmos o acesso aos bens de produção para qualquer um, o que, por incrível que pareça, é muito fácil, geraremos um desenvolvimento econômico real sem precedentes no país. Parece uma idéia Marxista, mas, ao contrário da interpretação restritiva da esquerda tradicional, devemos encarar o capital como o insumo básico para o desenvolvimento econômico. É preferível termos inflação com desenvolvimento do que estabilidade com recessão. Ainda, se formos suficientemente espertos, podemos, sem dúvida, alcançar o desenvolvimento com estabilidade.

   Nós, peixes, precisamos de soluções para peixes, sem cair na conversa da garça. Globalizar é inevitável, mas devemos exigir o que necessitamos e não o que nos é imposto. O peixe nada tem a comemorar na semana santa. Vamos nos inserir no contexto econômico mundial como elementos dinâmicos e participantes, e não como micro geradores protéicos (ou econômicos), iludidos por uma realidade virtual para atender interesses externos. Desejamos o Brasil inserido em um mundo globalizado, ocupando uma posição compatível com sua importância e não a oligarquia  mundial absorvendo o que o Brasil  tem de bom.

Escrevi este texto para a Gazeta Mercantil em 2002, achei pertinente republicar.

Eng. Walter Kauffmann Neto