Em uma
época não muito distante, uma garça, outrora bela e radiante e eficiente
pescadora, começava a sentir o peso da idade, talvez mais que simplesmente pelo
efeito do tempo mas também pelo aumento da sabedoria que, infelizmente, chega
apenas com as primeiras rugas. Assuntava como deveria fazer para manter seu
padrão alimentar sem continuar a empreender os esforços que até então eram tão
necessários. Além disto, os peixes, outrora tão estúpidos, ficavam mais
espertos e ariscos, assim como as águas ficavam mais turvas e profundas.
Surgiu-lhe então brilhante ideia. Primeiro aproximou-se dos líderes dos
cardumes e, como entre suas qualidades estavam o dom da oratória e o domínio da
informação, passou a pregar entre eles a existência do Ribeirão Encantado. Tal
lugar era maravilhoso e fantástico. Todos estariam mais próximos. As águas eram
rasas e cristalinas. Todos viveriam em harmonia. As águas seriam uma só, um
verdadeiro ecossistema globalizado. Logo todos os peixes comentavam a mesma
história, cobiçando avidamente em lá viverem.
Metodicamente
a garça preparou todos os cardumes para chegarem até o Ribeirão Prometido.
Ensinou-os a se comunicar rapidamente. Organizou os cardumes caóticos.
Emagreceu os peixes muito gordos, engordou os muito magros. Quando achou que
todos estavam prontos, reuniu os
cardumes e avisou: “Preparem-se, levá-los-ei ao Ribeirão Encantado. Todos irão
em grupos no meu bico.” Assim iniciou-se a grande passagem para as águas
prometidas. Aos bandos, os peixe entregavam-se à condução da garça até o
manasses.
Quando
o último peixe entrou no bico da garça, passou-lhe uma aflição pela mente:
“Estou no bico daquela que sempre devorou avidamente minha raça.....Estarei
louco ?” Sua preocupação durou pouco. Gentilmente a garça o libertou em um lago
raso de águas cristalinas. Todos os peixes estavam lá. Com pouca profundidade e
águas límpidas podia-se enxergar o céu naquele éden dos ribeirões. Além disto,
estavam bastante próximos e em muita harmonia. O lugar era belo, exatamente como a garça havia
prometido. E assim naquele paraíso
aquático, a garça pode viver o resto de seus dias, pescando, sem nenhum
esforço, os abundantes cardumes do Ribeirão Encantado.
A
história contada cai como uma luva para explicar o momento em que vivemos.
Estamos vivenciando a transição do capitalismo selvagem para o capitalismo
domesticado. Os dominantes, tal qual a garça, preparam-nos, os peixes, para a
terra prometida, a qual foi chamada de mundo globalizado. Algumas condições
foram necessárias para que a globalização ocorresse: estabilidade econômica da
base monetária, estabilidade política, comunicação e informatização
instantânea, leis que promovessem o respeito à propriedade intelectual, entre
outras. Um a um, os cardumes foram sendo organizados de acordo com sua
importância como reserva de proteína financeira. Muita atenção para México,
Brasil, densamente povoados; menos atenção para Argentina, Uruguai.
Uma a
uma, nas últimas décadas, nossa Republiquetas Banana-Cucarachas foram guiadas
para um padrão mundial. Como primeiro ponto, foram re-estabelecidas as
“liberdades democráticas”. Como a democracia é o espelho do povo e a liberdade veio
antes da educação, vivemos, na verdade, uma analfabetocracia, onde o governo é
eleito pelo poder econômico interno ou externo. O comando, que deveria ser de
todos, é exercido por uma oligocracia detentora do capital e da informação.
Estes poucos são também facilmente controláveis através de mais capital e
informação.
Depois
disto, a economia teve de ser estabilizada. A expansão da base monetária teve
de ser travada, assim como a atividade econômica, a qualquer custo. A produção
foi controlada e a geração de riquezas limitada àquela compatível com um
crescimento pequeno do PIB. Tem-se, então, uma economia não inflacionária e
levemente recessiva. As taxas de juros para investimento são altas e os prazos
curtos. O capital de risco desaparece e a concentração dos recursos financeiros
vai para o consumo pulverizado e para o autofinanciamento da dívida pública.
Por
fim, a informação e a comunicação tornam-se perfeitas e instantâneas. A
organização e a estabilidade passaram a ser pregadas e difundidas entre todos
como únicas virtudes de um povo a ser defendias a qualquer custo. Pouca
diferença passa a existir entre México, Nova York, Tókio e São Paulo em relação
ao dia-a-dia econômico. As redes bancárias passaram a ser mundiais.
Então
o Ribeirão ficou liberado para a pesca. Os governos administram com fúria
arrecadadora. Os chamados países emergentes, como o Brasil, castigam
impiedosamente os setores produtivos e a população com os mais variados
impostos. Tudo vale para obter recursos para manter a máquina administrativa,
rolar a dívida pública e realizar alguma obra. Para isto vale também privatizar
toda e qualquer empresa pública. As instituições bancárias estrangeiras são as
primeiras a chegar. Compram, reestruturam, demitem e agilizam qualquer banco que
esteja vulnerável. Seguem grandes conglomerados de indústrias e serviços.
A
palavra de ordem no meio empresarial passa a ser a fusão ou incorporação.
Desaparecem as pequenas empresas, sobrevivem apenas aquelas que tem alguma
utilidade na cadeira alimentar, desculpem, cadeia produtiva, e mesmo assim, os
preços globalizados permitem sua sobrevivência mas não o crescimento. As
empresas saudáveis logo trocam de donos. O empresário entra em extinção e sai
de cena; prolifera o executivo,
representante da mega corporação. O cidadão passa a ser refém de mega
oligopólios podendo optar por sua companhia telefônica, banco e só. Os
peixinhos são esfolados aos pouquinhos, com taxas, tarifas, preços
monopolistas.
E
para manter e divulgar tudo isto uma fantástica máquina de propaganda de fazer
inveja ao partido nazista. Consumir e se endividar são palavras de ordem.
Técnicas de som e imagem fazem o cidadão acreditar que o sucesso é aquele tal
remédio para hemorróidas ou aquele carro vendido com “juro zero”. Quando poderíamos
imaginar assistir comercial de um bando de endividados, cantando em coro e com
felicidade de da inveja o nome da “financeira” que lhe empresta dinheiro fácil
a “juros baixíssimos” ?
Vamos
começar a pensar um pouco. Temos sido extremamente ingênuos nos últimos anos,
cultuando uma imagem preguiçosa e indolente de nós mesmos. Por exemplo, o
personagem Zé Carioca, criado pelo americano Walt Disney, não é nem um pouco
parecido com o verdadeiro carioca médio, que trabalha de sol a sol pelo seu
sustento, e, como disse o Chico Buarque,”....mora lá longe e chacoalha num trem
da central...”. Achamos que os estrangeiros desconhecem o Brasil e pensam que
nossa capital é Buenos Aires. Porém a realidade é que os executivos que aqui
aportam são extremamente bem preparados e conhecem nosso país melhor do que nós
mesmos.
Além disto, a
mídia somente dá destaque aos aspectos negativos do nosso dia-a-dia. Soma-se o
fato de que mentiras históricas são repetidas diariamente nos nossos ouvidos.
Vejam o orgulho com que outros países tratam seus personagens históricos e a
chacota com que tratamos os nossos, chegando a denominar uma mini-série sobre o
Brasil exibida em vários países como “O Quinto dos Infernos”. É’ o exemplo
máximo da nossa propensão a bobos da corte mundial. As mentiras e infâmias
repetidas seguidamente passam a ser verdades defendidas pelo povo.
Não vamos ressuscitar a xenofobia rançosa da esquerda
claudicante, mas valorizar nossas potencialidades. Buscar soluções econômicas e
sociais mais contextualizadas com nossa realidade tupiniquim. O Brasil tem muito que produzir e gerar
riquezas internas. Temos de plantar 100% das nossas terras agricultáveis e não
10% como fazemos hoje. As indústrias tem de trabalhar dois turnos e ampliar e
não trabalhar meio turno e fechar, como tem ocorrido. O capital, a terra, a
tecnologia devem ser instrumentos de desenvolvimento e não de dominação. Se
garantirmos o acesso aos bens de produção para qualquer um, o que, por incrível
que pareça, é muito fácil, geraremos um desenvolvimento econômico real sem
precedentes no país. Parece uma idéia Marxista, mas, ao contrário da
interpretação restritiva da esquerda tradicional, devemos encarar o capital
como o insumo básico para o desenvolvimento econômico. É preferível termos
inflação com desenvolvimento do que estabilidade com recessão. Ainda, se formos
suficientemente espertos, podemos, sem dúvida, alcançar o desenvolvimento com
estabilidade.
Nós,
peixes, precisamos de soluções para peixes, sem cair na conversa da garça.
Globalizar é inevitável, mas devemos exigir o que necessitamos e não o que nos
é imposto. O peixe nada tem a comemorar na semana santa. Vamos nos inserir no
contexto econômico mundial como elementos dinâmicos e participantes, e não como
micro geradores protéicos (ou econômicos), iludidos por uma realidade virtual
para atender interesses externos. Desejamos o Brasil inserido em um mundo
globalizado, ocupando uma posição compatível com sua importância e não a
oligarquia mundial absorvendo o que o
Brasil tem de bom.
Escrevi este texto para a Gazeta Mercantil em 2002, achei pertinente
republicar.
Eng. Walter Kauffmann Neto
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