quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A GRAVAÇÃO DA PROVA PERICIAL

 

   Para aqueles que participam de atos periciais na qualidade de partes ou assistentes fica muitas vezes a dúvida sobre a permissibilidade ou não do registro gravado do ato pericial. Muitos peritos oficiais colocam empecilhos ou oposição ao registro por parte dos assistentes, causando muitas vezes constrangimento e mal estar. Independente da vontade do expert, o ato pericial é regido pelo atual Código de Processo Cível, NCPC. A parte e seu assistente não podem em hipótese alguma ter cerceados seus direitos.

    Sobre o ato pericial, embora este não seja diretamente mencionado, este é um ato análogo a uma audiência de instrução.  Ou seja, tanto a audiência de instrução como a perícia judicial são meios de colheita de prova. A diferença é que na primeira o juiz atua diretamente, enquanto na segunda o perito figura como uma espécie de longa manus ou auxiliar do magistrado. Desta forma, o que vale para uma audiência, vale para uma perícia.

    O Art. 367, do CPC estipula o procedimento da audiência de instrução e julgamento, e pode ser aplicado por analogia à perícia técnica:

 
Art. 367. O servidor lavrará, sob ditado do juiz, termo que conterá, em resumo, o ocorrido na audiência, bem como, por extenso, os despachos, as decisões e a sentença, se proferida no ato.
§ 1o Quando o termo não for registrado em meio eletrônico, o juiz rubricar-lhe-á as folhas,
que serão encadernadas em volume próprio.
§ 2o Subscreverão o termo o juiz, os advogados, o membro do Ministério Público e o
escrivão ou chefe de secretaria, dispensadas as partes, exceto quando houver ato de disposição
para cuja prática os advogados não tenham poderes.
§ 3o O escrivão ou chefe de secretaria trasladará para os autos cópia autêntica do termo
de audiência.
§ 4o Tratando-se de autos eletrônicos, observar-se-á o disposto neste Código, em
legislação específica e nas normas internas dos tribunais.
§ 5o A audiência poderá ser integralmente gravada em imagem e em áudio, em meio
digital ou analógico, desde que assegure o rápido acesso das partes e dos órgãos julgadores, observada a legislação específica.
§ 6o A gravação a que se refere o § 5º também pode ser realizada diretamente por
qualquer das partes, independentemente de autorização judicial.

    O entendimento apresentado é confirmado por decisão, em que, mesmo tendo sido proferida antes mesmo da vigência do NCPC, o TRT5 já confirma a permissão da gravação audiovisual de perícia pela parte, cumprindo-nos destacar o trecho abaixo excerto:

 “É preciso, ainda, relembrar que a produção da prova pericial se faz em verdadeiro ato judicial que se assemelha à audiência judicial. Pode-se, inclusive, falar-se em verdadeira audiência judicial. Pode-se, inclusive, falar-se em verdadeira audiência para colheita de prova, ainda que se faça sob a direção do perito, por delegação de poderes e por ordem do juiz. E tanto isso é verdade, que ao perito é assegurado, “para o desempenho de sua função”,..., “utilizar-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder de parte ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com plantas, desenhos, fotografias e outras quaisquer peças” (art. 429 do CPC)”.  

(https://trt-5.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/17958765/mandado-de-seguranca-ms-4762920105050000-ba-0000476-2920105050000/inteiro-teor-17958766)

    Salienta-se que, como a legislação estabelece que a gravação pode ser realizada “independentemente de autorização judicial”, pretendemos gravar a perícia sem submeter tal questão previamente ao perito, e, apenas utilizá-la em caso de necessidade. Desta forma, a gravação é um direito que não pode ser suprimido, atendendo os devidos cuidados:

a)    § 5o A audiência poderá ser integralmente gravada...;

    Assim, não é legal a gravação e disponibilização parcial do arquivo, mas somente na sua integralidade. 

b)   ...desde que assegure o rápido acesso das partes....

    As partes têm o direito de acessar a gravação em sua totalidade, independente de quem tenha realizado a gravação.

Lembra-se também que a gravação e disponibilização do ato está subordinada a lei como um todo. Desta forma, há que se relativizar este direito em acordo com a legislação vigente. Questões como sigilo de justiça, propriedades intelectuais, privacidade deverão ser consideras. Cuidados na divulgação e montagens também podem configurar crimes.

             Desta forma, fica claro que a gravação eletrônica por qualquer meio de um ato pericial é um direito garantido por lei as partes, independente da vontade do condutor do ato pericial. Está claro que este procedimento tem a única e exclusiva finalidade de registro do ato, sendo direito de todos o seu acesso.

Eng. Walter Kauffmann Neto

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A GARÇA E O MUNDO GLOBALIZADO (2002)

    Em uma época não muito distante, uma garça, outrora bela e radiante e eficiente pescadora, começava a sentir o peso da idade, talvez mais que simplesmente pelo efeito do tempo mas também pelo aumento da sabedoria que, infelizmente, chega apenas com as primeiras rugas. Assuntava como deveria fazer para manter seu padrão alimentar sem continuar a empreender os esforços que até então eram tão necessários. Além disto, os peixes, outrora tão estúpidos, ficavam mais espertos e ariscos, assim como as águas ficavam mais turvas e profundas. Surgiu-lhe então brilhante ideia. Primeiro aproximou-se dos líderes dos cardumes e, como entre suas qualidades estavam o dom da oratória e o domínio da informação, passou a pregar entre eles a existência do Ribeirão Encantado. Tal lugar era maravilhoso e fantástico. Todos estariam mais próximos. As águas eram rasas e cristalinas. Todos viveriam em harmonia. As águas seriam uma só, um verdadeiro ecossistema globalizado. Logo todos os peixes comentavam a mesma história, cobiçando avidamente em lá viverem.

     Metodicamente a garça preparou todos os cardumes para chegarem até o Ribeirão Prometido. Ensinou-os a se comunicar rapidamente. Organizou os cardumes caóticos. Emagreceu os peixes muito gordos, engordou os muito magros. Quando achou que todos estavam prontos, reuniu  os cardumes e avisou: “Preparem-se, levá-los-ei ao Ribeirão Encantado. Todos irão em grupos no meu bico.” Assim iniciou-se a grande passagem para as águas prometidas. Aos bandos, os peixe entregavam-se à condução da garça até o manasses.

    Quando o último peixe entrou no bico da garça, passou-lhe uma aflição pela mente: “Estou no bico daquela que sempre devorou avidamente minha raça.....Estarei louco ?” Sua preocupação durou pouco. Gentilmente a garça o libertou em um lago raso de águas cristalinas. Todos os peixes estavam lá. Com pouca profundidade e águas límpidas podia-se enxergar o céu naquele éden dos ribeirões. Além disto, estavam bastante próximos e em muita harmonia. O lugar era  belo, exatamente como a garça havia prometido. E assim  naquele paraíso aquático, a garça pode viver o resto de seus dias, pescando, sem nenhum esforço, os abundantes cardumes do Ribeirão Encantado.

    A história contada cai como uma luva para explicar o momento em que vivemos. Estamos vivenciando a transição do capitalismo selvagem para o capitalismo domesticado. Os dominantes, tal qual a garça, preparam-nos, os peixes, para a terra prometida, a qual foi chamada de mundo globalizado. Algumas condições foram necessárias para que a globalização ocorresse: estabilidade econômica da base monetária, estabilidade política, comunicação e informatização instantânea, leis que promovessem o respeito à propriedade intelectual, entre outras. Um a um, os cardumes foram sendo organizados de acordo com sua importância como reserva de proteína financeira. Muita atenção para México, Brasil, densamente povoados; menos atenção para Argentina, Uruguai.

    Uma a uma, nas últimas décadas, nossa Republiquetas Banana-Cucarachas foram guiadas para um padrão mundial. Como primeiro ponto, foram re-estabelecidas as “liberdades democráticas”. Como a democracia é o espelho do povo e a liberdade veio antes da educação, vivemos, na verdade, uma analfabetocracia, onde o governo é eleito pelo poder econômico interno ou externo. O comando, que deveria ser de todos, é exercido por uma oligocracia detentora do capital e da informação. Estes poucos são também facilmente controláveis através de mais capital e informação.

     Depois disto, a economia teve de ser estabilizada. A expansão da base monetária teve de ser travada, assim como a atividade econômica, a qualquer custo. A produção foi controlada e a geração de riquezas limitada àquela compatível com um crescimento pequeno do PIB. Tem-se, então, uma economia não inflacionária e levemente recessiva. As taxas de juros para investimento são altas e os prazos curtos. O capital de risco desaparece e a concentração dos recursos financeiros vai para o consumo pulverizado e para o autofinanciamento da dívida pública.

    Por fim, a informação e a comunicação tornam-se perfeitas e instantâneas. A organização e a estabilidade passaram a ser pregadas e difundidas entre todos como únicas virtudes de um povo a ser defendias a qualquer custo. Pouca diferença passa a existir entre México, Nova York, Tókio e São Paulo em relação ao dia-a-dia econômico. As redes bancárias passaram a ser mundiais.

      Então o Ribeirão ficou liberado para a pesca. Os governos administram com fúria arrecadadora. Os chamados países emergentes, como o Brasil, castigam impiedosamente os setores produtivos e a população com os mais variados impostos. Tudo vale para obter recursos para manter a máquina administrativa, rolar a dívida pública e realizar alguma obra. Para isto vale também privatizar toda e qualquer empresa pública. As instituições bancárias estrangeiras são as primeiras a chegar. Compram, reestruturam, demitem e agilizam qualquer banco que esteja vulnerável. Seguem grandes conglomerados de indústrias e serviços.

    A palavra de ordem no meio empresarial passa a ser a fusão ou incorporação. Desaparecem as pequenas empresas, sobrevivem apenas aquelas que tem alguma utilidade na cadeira alimentar, desculpem, cadeia produtiva, e mesmo assim, os preços globalizados permitem sua sobrevivência mas não o crescimento. As empresas saudáveis logo trocam de donos. O empresário entra em extinção e sai de cena;  prolifera o executivo, representante da mega corporação. O cidadão passa a ser refém de mega oligopólios podendo optar por sua companhia telefônica, banco e só. Os peixinhos são esfolados aos pouquinhos, com taxas, tarifas, preços monopolistas.

    E para manter e divulgar tudo isto uma fantástica máquina de propaganda de fazer inveja ao partido nazista. Consumir e se endividar são palavras de ordem. Técnicas de som e imagem fazem o cidadão acreditar que o sucesso é aquele tal remédio para hemorróidas ou aquele carro vendido com “juro zero”. Quando poderíamos imaginar assistir comercial de um bando de endividados, cantando em coro e com felicidade de da inveja o nome da “financeira” que lhe empresta dinheiro fácil a “juros baixíssimos” ?

     Vamos começar a pensar um pouco. Temos sido extremamente ingênuos nos últimos anos, cultuando uma imagem preguiçosa e indolente de nós mesmos. Por exemplo, o personagem Zé Carioca, criado pelo americano Walt Disney, não é nem um pouco parecido com o verdadeiro carioca médio, que trabalha de sol a sol pelo seu sustento, e, como disse o Chico Buarque,”....mora lá longe e chacoalha num trem da central...”. Achamos que os estrangeiros desconhecem o Brasil e pensam que nossa capital é Buenos Aires. Porém a realidade é que os executivos que aqui aportam são extremamente bem preparados e conhecem nosso país melhor do que nós mesmos.

     Além disto, a mídia somente dá destaque aos aspectos negativos do nosso dia-a-dia. Soma-se o fato de que mentiras históricas são repetidas diariamente nos nossos ouvidos. Vejam o orgulho com que outros países tratam seus personagens históricos e a chacota com que tratamos os nossos, chegando a denominar uma mini-série sobre o Brasil exibida em vários países como “O Quinto dos Infernos”. É’ o exemplo máximo da nossa propensão a bobos da corte mundial. As mentiras e infâmias repetidas seguidamente passam a ser verdades defendidas pelo povo.

  Não vamos ressuscitar a xenofobia rançosa da esquerda claudicante, mas valorizar nossas potencialidades. Buscar soluções econômicas e sociais mais contextualizadas com nossa realidade tupiniquim.  O Brasil tem muito que produzir e gerar riquezas internas. Temos de plantar 100% das nossas terras agricultáveis e não 10% como fazemos hoje. As indústrias tem de trabalhar dois turnos e ampliar e não trabalhar meio turno e fechar, como tem ocorrido. O capital, a terra, a tecnologia devem ser instrumentos de desenvolvimento e não de dominação. Se garantirmos o acesso aos bens de produção para qualquer um, o que, por incrível que pareça, é muito fácil, geraremos um desenvolvimento econômico real sem precedentes no país. Parece uma idéia Marxista, mas, ao contrário da interpretação restritiva da esquerda tradicional, devemos encarar o capital como o insumo básico para o desenvolvimento econômico. É preferível termos inflação com desenvolvimento do que estabilidade com recessão. Ainda, se formos suficientemente espertos, podemos, sem dúvida, alcançar o desenvolvimento com estabilidade.

   Nós, peixes, precisamos de soluções para peixes, sem cair na conversa da garça. Globalizar é inevitável, mas devemos exigir o que necessitamos e não o que nos é imposto. O peixe nada tem a comemorar na semana santa. Vamos nos inserir no contexto econômico mundial como elementos dinâmicos e participantes, e não como micro geradores protéicos (ou econômicos), iludidos por uma realidade virtual para atender interesses externos. Desejamos o Brasil inserido em um mundo globalizado, ocupando uma posição compatível com sua importância e não a oligarquia  mundial absorvendo o que o Brasil  tem de bom.

Escrevi este texto para a Gazeta Mercantil em 2002, achei pertinente republicar.

Eng. Walter Kauffmann Neto